terça-feira, 24 de março de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 5

Testamento de Portugal aos Seus Portugueses
por Cynthia Guimarães Taveira


Deixo-vos cordas para que vos agarreis a elas, se o vento não estiver de feição. São cordas de pedra, feitas por vós mesmos, pois apenas as cordas de pedra decerto não cederão às intempéries das vossas provações. Estendem-se do céu ao chão, e assim, logo que as brumas vos cobrirem, saberão os caminhos pelo tacto dos vossos dedos que muito estimo, por serem capazes de muitas e grandes coisas. Deixo-vos as cordas para as intempéries e, quando o barco vos parecer avançar ou devagar ou aos solavancos, e Nosso Senhor, que não vos esquece, vos parecer um pouco distante, podereis lembrar-vos desta dádiva e de tudo quanto ela significa na viagem. O barco balança mas olhai as velas que permanecem de pé e, se o balanço se tornar em ira divina ou demoníaca (pois nunca sabemos bem), agarrai-vos ainda com mais força a essas cordas e, se possível, subi por elas até ao cimo do mastro. Vereis os vossos olhos serem transpostos do nível dos peixes que sois ao nível das aves, e, de lá, desse alto onde residem os anjos, constatareis que os reveses das vossas vidas são grãos de areia submissos ao mar, assim como vós sois submissos a Deus. Sede fortes e sábios como a pedra e nenhum mal vos poderá acontecer, pois Nosso Senhor ama os fortes e sábios porque para eles não há labirintos onde se esconda a sua fé e a sua coragem vinda dos sonhos, nem brumas que não possam atravessar.

Deixo-vos as especiarias desse outro mundo onde o sol nasce primeiro, em frascos determinados para que encontreis o sabor da vida e sustenteis o corpo com suas fragrâncias e odores e descubrais nelas os aromas que emanam do espírito oriental. Canela para intensificar a doçura do vosso coração, a mesma com que enfatizastes as descobertas e é, ainda nos vossos dias, apreciada por esse mundo que se vos revelou e onde, por vezes, algumas gentes vos relembram por um carinho que nelas deixastes ou pelos vossos diminutivos acrescentados, que são o tom da carícia com o qual a vossa língua imprimiu a ternura que tendes no vosso coração às coisas e sentimentos que vos rodeiam. E para vos lembrardes que essa canela carinhosa e quente é a subtileza da qual sois donos e a mesma que vos impede de ficardes prisioneiros do vício recente da razão.

Deixo-vos pimenta do reino, de maneira a que o fogo animador das vossas acções não se extinga, sobretudo aquele que vos imprimiu a arte de amar fora das fronteiras conhecidas. Sem esse apimentar do vosso coração, o vosso sangue andará lento, e a vossa arte permanecerá inerte como uma pedra que não conheceu mãos de artífice, sem que de nenhuma obra sejam capazes e bem sabeis que toda a arte é fruto de uma intuição permanente da distância que vai do imperfeito ao perfeito e que o propósito das vossas vidas é o de tornar o mundo, as gentes e os seres dotados de vida, de tal forma divinos que sejam dignos de figurar num simples reflexo de uma das jóias do Senhor. Sendo toda a arte fruto dessa intuição, ela é também filha desse calor libertado na longa conversa e, por vezes, da desconversa ouvida dentro de vós entre a Alegria que vos deleita quando contemplais o espelho da verdadeira beleza que há nas coisas deste e dos outros mundos e essas lágrimas correndo, como esses rios rápidos da Amazónia, desaguando no mar do desespero e cuja nascente reside no desencanto e desalento que tendes ao contemplar a miséria das humanidades e, sobretudo, da vossa própria miséria que sentis por vos verdes impotentes perante um mundo que se queria belo e bom e que se revela impróprio para bons corações. Essa miséria é-vos trazida à consciência por vagas poéticas inspiradas pela saudade e que em nada se detêm com o fim de atingir o vosso centro vital, para em seguida atingir o vosso pensamento e, mais tarde, a vossa capacidade de agir em conformidade com essa Arte do Amor. Vedes agora a importância dessa pimenta que alimenta os sentimentos contraditórios que vos dominam, a alegria e o desencanto, sendo o primeiro bom pela sua natureza e o segundo apenas necessário, pois ele é garantia da vossa humildade.

Deixo-vos cravinho da Índia, não pelo cravinho em si, mas pelo nome da Índia que contém, aquela da origem dos perfumes que vos chegaram um dia na maresia e dos quais não mais vos esquecestes e que vos levou a imprimir rotas no grande mar. Perfumes de outras línguas e vestes, de outros deuses e templos, de outras florestas com suas feras jamais domesticáveis e elefantes brancos balançando no ritmo da paz. Perfumes suaves trazidos para as vossas janelas sempre que uma caravela lançava a âncora no fundo do Tejo, lançando raízes de outras épocas, de outros espaços, entrelaçando-se com os vossos seixos arcaicos, com as vossas algas aveludadas pelas águas, com os vossos peixes permanentes no signo que se vos impõe. Outros perfumes de outras filosofias da floresta onde os homens santos e mendigos sustentam que o tempo tem falhas e que é possível sair das suas malhas. E se de nada do que escrevi entendestes, experimentai, em acto, em gesto, em ser, lançar a mão à janela, fechar os olhos e sentir de novo esses perfumes ecoar dentro da vossa viva memória, e permiti-vos a vós mesmos perceber que a sinfonia dessas filosofias, desses voos em êxtase em nada distam do que perseguis, em nada estorvam, desdizem ou fazem duvidar do Império que vos foi prometido e que vós não tardais a encontrar, por vosso próprio esforço e mérito, e por toda a graça de Deus, mas acima de tudo por esse primeiro acto, gesto, dança profética, que é o de abrir novamente a janela e escutar a missão que vos foi dada pelo sopro do Espírito Santo.

Não estranheis esta outra herança que vos deixo, não o faço por avareza ou superstição, mas por ser um país antigo e por demais demorado noutras paragens, tendo muito visto e adquirido nas minhas aproximações às terras, tanto de muitas gentes como de ninguém. Deixar-vos-ei apenas um único japonês, sendo o bastante para gozardes de um tesouro vivo. Um japonês idoso de longas barbas, encarnando os ciclos das estações na sua totalidade e, ao mesmo tempo, com a frescura dos jovens que nada temem e não se debatem ainda nas redes dos medos e apreensões perante o incognoscível. Que ele esteja sentado frente a um jardim zen, com suas dunas e ondulações de areia e que assim suscite a vossa curiosidade e vos faça a gestação e parto das vossas dúvidas, ao contrário das certezas agigantadas e do desleixo face às perguntas essenciais que ficam por fazer por um grande número de gentes agitadas, mexidas, remoídas, cambalhotando e cambaleando em jeito de enguias num mar de ignorâncias. Deixo-vos o olhar fixo desse homem para que o vosso olhar se fixe igualmente num ponto, aquele de onde brota a verdade no caso de quem o vê de lá para cá, ou aquele de onde brota a luz, símbolo que serviu o oriente como veste de corte perfeito, no caso de quem o vê de cá para lá. Com ele deixo-vos, de igual modo, a sua herança da não separação daquilo que aparentemente se opõe, o sol e a lua, o negrume e a brancura, o bem e o mal, a vida e a morte, antes a sua união até ao ponto pérola, o mesmo que faz a mistura da água com o açúcar nas vossas cozinhas, quando já não se entende mais onde se inicia o sólido ou o líquido, reflectindo-se nessa cor madrepérola as cores desse arco que nos surge, como por encanto, por altura do fim das tempestades e do reacendimento do sol. Essa união, que é o contrário das falsas vitórias concedidas por todas as guerras, é possível nos caminhos que devereis amar, em vez de os conquistardes, e estareis à vontade se por aí fordes, porque nesses percursos amorosos todas as derrotas serão verdadeiras, e vos farão crescer e erguer de novo, mais fortes e mais atentos aos vossos erros.

Com esse homem oriental podereis aprender a conhecer melhor o dom da contemplação, para a qual já tendes tendência natural quando nos vossos cabos, no cimo das vossas rochas, vos debruçais para entender o mar; com esse dom, a lição e conclusão das vossas vidas situa-se entre o silêncio que vos concede a noite e a luz do dia cobrindo as searas no milagre da clarividência da alegria da existência revelada no tempo breve em que um pardal levanta voo.

Será esse japonês que vos explicará, sem vos explicar, pegando somente num pincel, que a arte é só uma e não essas tantas zangadas, divididas, ensimesmadas e, por isso, fragilizadas por uma visão quebrada e distante do sentido e da mensagem das coisas. Com um pincel, em rigor, nas suas mãos, o compasso e o esquadro são só um, a letra e a pintura uma só, o som de uma língua e emoção serão iguais a uma melodia, o acto e o espírito não se diferenciarão, assim como o canto do pardal não se diferencia da graça do seu voo.

Assim vos deixo a missão da missão para que nela vivais e vos cumprais, e o demais são palavras por construir e sonhos por fazer.